30 de out. de 2010

Reflexão teórica por Estéfano Romani

Máquinas Subjetivas

Estéfano Romani
02 de Dezembro de 2010

Pretendo desenvolver uma reflexão teórica em torno do projeto “Olho” do grupo Minik Momdó, no qual participo como intérprete-criador.

O foco desse trabalho teórico será o diálogo entre as propostas do “Olho” e o pensamento esquizoanalítico de Deleuze e Guattari. Na busca de uma subjetividade em contínua transformação, na qual a esquizoanálise substitui estruturas por fluxos e intensidades, Deleuze nos fala de práticas artísticas que libertem o homem do representacional, assim como a Performance faz, ou ao menos o pretende.

Em “Olho”, as instalações são ocupadas numa Performance tomada como matéria prima para que desenhistas, fotógrafos e video-makers produzam trabalhos pessoais. Assim como na esquizoanálise, o projeto não possui um centro ou uma palheta determinada de significados a ser passada ao público, ele se constitui numa proposta aberta a interferência de autores e de linguagens diferentes para que se crie um sistema em que cada parte pode ser considerada o tema, o processo ou o resultado da arte.

“O que importa é a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas, que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de se re-singularizar” (Guattari, 1992).

Em sua obra “Revolução Molecular”, Félix Guattari nos mostra como os reducionismos da psicanálise freudiana o impeliram a enveredar para outras possibilidades de funcionamento do inconsciente e construir, conjuntamente ao filósofo Gilles Deleuze, um novo tipo de análise chamada esquizoanálise. Para Guattari, existem várias maneiras de lidar com o que podemos considerar de “avesso” da racionalidade, aquilo que foge do domínio da lógica habitual, da normalidade e da boa adaptação social. Ele prefere considerar que esses comportamentos simplesmente obedecem a uma lógica diferente. Em vez de abandoná-los à sua irracionalidade aparente, tratá-los como uma espécie de matéria-prima, como uma espécie de mineral de que se podem extrair elementos essenciais à vida da humanidade, especialmente em relação às potencialidades criativas do homem.

Em primeiro lugar, o que deveria ser revisto é a própria concepção de inconsciente, majoritariamente provinda da teoria freudiana e de suas reverberações na sociedade. Há um senso comum de que o inconsciente seria algo que fica no fundo da cabeça, uma espécie de caixa preta onde estão armazenados os segredos íntimos, os sentimentos confusos, as segundas intenções suspeitas. Algo que deve ser manejado com cuidado. Segundo a maior parte dos psicanalistas, não poderíamos ter acesso aos conteúdos inconscientes sem antes passar por um longo e trabalhoso processo no qual o profissional estabelece uma espécie de arqueologia psíquica altamente controlada com seu paciente.

Em contraposição, Guattari cria o inconsciente esquizoanalítico, um inconsciente independente de especialistas, formado por um campo ao qual cada um poderia ter acesso tranquilamente sem preparo especial. A denominação “esquizo” vem do fato de sua abordagem do inconsciente estar mais ligada ao modelo psicanalítico da psicose do que às neuroses a partir das quais foi construída a psicanálise. Contudo, essas duas análises não são colocadas de forma diametralmente oposta: a esquizoanálise retoma alguns dos elementos do antigo modelo psicanalítico. O que Guattari diz é que a fórmula freudiana de inconsciente privado, personológico, familialista e edipiano não é aqui negado, mas considerado como um caso de figura do inconsciente extremamente particular e, portanto, não ilustrativo do inconsciente como um todo.

O filósofo Guattari diz que a melhor posição para se ouvir o inconsciente não consiste necessariamente em ficar sentado atrás de um divã. Para ele, a relação da psicanálise com o inconsciente é completamente determinada, fechada em si mesma, sem espaço para nenhuma possibilidade de criação. Os conteúdos inconscientes são considerados recalques do passado: enunciados, imagens e fantasias proibidas que o consciente não poderia tolerar. Já em sua esquizoanálise, o inconsciente não trata mais dos objetos parciais tipificados de Freud (como o pênis, o seio, por exemplo), mas de uma multidão de objetos singulares e heterogêneos que se articulam sem nunca serem reduzidos a complexos universalizantes.

Deleuze e Guattari falam de um inconsciente cujos componentes não dependem de uma sintaxe universal. A disposição de seus conteúdos é singular (tal como pode se manifestar nos sonhos e nas fantasias) e não presta conta a procedimentos analíticos reducionistas, do tipo complexo de castração, complexo de Édipo. Não constituem um conjunto de imagens representativas, mas um lugar de interação entre os componentes semióticos os mais diversos. Acima de tudo, suas estruturas não passam necessariamente pelos serviços de um analista: a esquizoanálise pode ser um empreendimento individual ou coletivo.

“Que mistificação é essa de pretender que o inconsciente trabalhe em segredo, que não se possa dispensar um certo tipo de detetive para decifrar suas mensagens...?” (GUATTARI, 1988).

O inconsciente aqui estudado é um plano de universos transformacionais onde o que era considerado estratificado e definitivamente cristalizado é alterado, produzindo outros conteúdos antes inexistentes. São platôs de intensidade constituídos pelo que Deleuze chama de devires: devir sexual, devir animal, devir planta. São fluxos que estão sempre em metamorfose e em movimento. Ao invés de um inconsciente de estrutura e de linguagem, um inconsciente de fluxos e devires.
Guattari relaciona o conservadorismo da psicanálise à organização capitalista da sociedade, indicando que, para a gigantesca indústria normatizadora de nossa sociedade capitalística, é mais interessante que pensemos o inconsciente como mais uma coisa centrada no sujeito individualizado do que num inconsciente que nos incite às transformações e que expanda nossa capacidade de criação. Um inconsciente esquizo das transformações possíveis é contrário à boa manutenção de relações de produção baseadas na exploração e na segregação social.

Num texto chamado “Devir criança, malandro, bicha”, Guattari aponta em nossa sociedade atual uma espécie de miniaturização do fascismo. Ao invés de cassetetes ou de campos de concentração, a produção capitalista procura controlar as pessoas com laços quase invisíveis: ela investe de modo inconsciente.

“Não apenas somos equipados semioticamente para ir à fábrica ou ao escritório, como somos injetados, além disso, de uma série de representações inconscientes, tendendo a moldar nosso ego. Nosso inconsciente é equipado para assegurar a sua cumplicidade com as formações repressivas dominantes” (GUATTARI, 1981).

A essa realidade, a esquizoanálise viria contrapor outra que não procura mais fazer com que as pessoas entrem em quadros pré-estabelecidos.

“Enquanto o aparelho de Estado nos oferece a palavra ... [ou] reduzindo o quanto pode as nossas potencialidades, a opção esquizo nos coloca em contato com a palavra ... [e] nos permite escolher tudo, abraçar tudo o que o nosso corpo permite, abraçar tudo aquilo que nossa vida permite” (VIERA, ?).

Para ilustrar a repressão do sistema capitalista sob nosso inconsciente, Guattari considera os desenhos de uma criança de três ou quatro anos, o que ele chama de escrita embrionária. Essa escrita não é cristalizada em nenhum aspecto, tudo é possível, há um grande potencial e um exercício da criatividade. No entanto, no funcionamento escolar, esse exercício sofre uma mudança radical: o desenho perde seu caráter transformador e de potência e, aos olhos dos adultos, passa a ser algo empobrecido, imitativo, ou seja, uma expressão totalmente voltada pela expressão adulta e tiranizada por uma preocupação de conformidade com as normas dominantes. Na realidade, a máquina do ensino obrigatório não tem por fim primordial transmitir informações, conhecimentos, uma cultura, mas transformar inteiramente as coordenadas semióticas da criança. De maneira mais ampla, toda nossa libido é captada, funcionalizada em prol das exigências da economia do capitalismo. Produz-se e consome-se subjetividade hoje até não se poder mais.

“... assim como se fabrica leite em forma de leite condensado, injeta-se representações nas mães, nas crianças – como parte do processo de produção subjetiva” (CANDIDO, ?).

Deleuze e Guattari propõem que o sujeito crie subjetividades, trace linhas que fujam aos efeitos do discurso capitalístico universalizante. É produção subjetiva todo processo que traça uma linha de fuga aos aparelhos do Estado sedentário. Considerar a subjetividade a partir do ângulo da produção advoga em favor de um sujeito prático que conforma uma subjetividade igualmente prática. Subjetividade, segundo a esquizoanálise, tem a ver com a imagem de uma floresta de objetos e de signos interligados para formar um gosto, um jeito de vestir, um modo de viver. Segundo Guattari, a subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção.

A esquizoanálise é basicamente produção de subjetividades, ou seja, um processo de reconsideração das significações dominantes. O agenciamento de enunciado, termo bastante usado nos textos de Guattari sobre o inconsciente esquizo, nada mais é do que uma linha de fuga capaz de explodir os estratos e de operar novas ligações semióticas, construir novas significações, novas associações. Um exemplo simples, dado por Guattari em “Referências para uma Esquizo-Análise”, seria o mero fato de alguém decidir escrever ou desenhar seus sonhos, ao invés de interpretá-los passivamente. Só isso já provocaria uma transformação no inconsciente, um novo agenciamento de enunciado.

“O inconsciente esquizo não é totalizante, mas desterritorializante. Ele garante sempre a conjunção possível dos sistemas de estratificação mais diferentes e é nisso que ele constitui, se se pode dizer, o material de base a partir do qual poderá constituir uma prática transformacional” (GUATTARI, 1988).

O metabolismo esquizo não depende somente de uma lógica. Ele põe em jogo matérias de expressão diferenciadas em função de seu grau de desterritorialização. Desterritorializar nada mais é do que livrar-se de um lugar ocupado. Esse é o funcionamento do inconsciente de Deleuze e de Guattari, produção de novos agenciamentos de enunciado, transformando lugares já ocupados em lugares novos, deslocando significados, abrindo para novas associações e novas leituras.
A subjetividade é produzida pelos agenciamentos de enunciação e os processos de semiotização – ou seja, toda a produção de sentido – implicam em meios de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal (sistemas econômicos, sociais, tecnológicos, etc) quanto de natureza infra-psíquica (sistemas de percepção, de sensibilidade, de representação, de imagens, de automatismos, etc).

A esquizoanálise não decifrará um inconsciente já todo constituído, fechado sobre si mesmo, ela o constituirá e concorrerá para a conexão de campos, de fluxos, de agenciamentos, para sua abertura máxima sobre o plano de consistência produtiva. Ela será levada a pôr em jogo modos de codificação e semióticos diversos, de ordem, por exemplo, biológica, sensitiva, dos semióticos verbais, gestuais, de campos políticos, das artes, etc.

Outro nome dado por Deleuze e Guattari ao inconsciente esquizo é “inconsciente maquínico”. Aqui, as máquinas não se referem ao espaço purificado das técnicas, mas a uma organização de fluxos e forças plurais e heterogêneas, ou seja, são “acoplamentos heterogêneos que agenciam”. Um inconsciente maquínico, pois é producente, é produtor de subjetividades, ou seja, de novos agenciamentos. O maquinismo abstrato, inconsciente, desenvolve a possibilidade de um outro agenciamento de enunciado.
O maquínico da esquizoanálise não está necessariamente ligado a objetos tecnológicos ou mecânicos. As máquinas podem ser corpos sociais, complexos industriais, convenções, materiais, formações psicológicas.

“As máquinas são junções de pedaços heterogêneos, a agregação que transforma as forças, articula e impulsiona seus elementos e os coloca em estado de contínua transformação” (MIRANDA, ?).

A esquizoanálise, que nada mais é do que a pragmática do inconsciente maquínico, pois enxerga a máquina como um acontecimento subjetivo. As máquinas são ferramentas, instrumentos, objetos, certamente, mas que em seus processos de invenção e uso correspondem inteiramente aos desejos humanos. A máquina é subjetiva antes de ser objetiva.
Dessa forma, o sujeito e a máquina são indissociáveis um do outro. Entra uma parte de subjetividade no seio de todo agenciamento material. E, reciprocamente, entra uma parte de sujeição maquínica no seio de todo agenciamento subjetivo. Os automóveis, por exemplo, possibilitam toda uma nova relação com o tempo e o espaço. Reduzir distâncias, acelerar o tempo, tornaram-se possíveis graças a ele. Constitui-se uma nova maneira de ver e entender, circular e agir sobre a cidade, a superfície terrestre.

O teórico Celso Cândido vê nas novas tecnologias de comunicação e informação centros da produção da subjetividade contemporânea. Assim como Guattari, ele não considera a produção do mass media, da informática, da robótica exterior à subjetividade psicológica. Ao contrário, funcionariam como equipamentos coletivos que afetam nossa sensibilidade, nossos afetos e também nosso inconsciente.

Para Celso, as atuais transformações tecnológicas da comunicação levam a pensar a questão da produção de subjetividades a partir de duas tendências: uma seria o aprofundamento da massificação, da homogeneização, universalizante e empobrecedora; a outra, estreitamente ligada à idéia de inconsciente maquínico da esquizoanálise, uma tendência heterogenética, um reforço da heterogeneidade e da singularização de seus componentes.

Guattari chama de subjetividades pós-midiáticas as parcelas subjetivas que, na era da informatização, dizem não à alienação, não à mass-mediatização opressiva, e partem rumo à reapropriação e a re-singularização da mídia na composição de novas possibilidades existenciais.

A meu ver, tal conceito de subjetividade pós-midiática cai como uma luva no que diz respeito à proposta e à experiência do projeto com o qual estou envolvido com o grupo de dança Minik Momdó.

“Olho” se utiliza da relação entre corpo humano e máquina para criar imagens novas. A partir desse encontro, novos agenciamentos de enunciado são criados tanto para o performer quanto para o espectador. As instalações funcionam como verdadeiros produtores de subjetividade. Não há uma mensagem específica a ser passada ao público. Cada um que assiste constrói sua semiologia, seu enredo, seus porquês, suas imagens.

Utilizamos materiais tecnológicos simples (câmera de vídeo, projetor) e os colocamos em lugares não habituais gerando choques de percepção e deslocamento de sentidos. Há uma desterritorialização que faz com que o espectador assuma uma postura ativa, criativa diante do que vê. É como o caso anterior, em que alguém decide desenhar seus sonhos: o sujeito coloca-se num lugar diferente e vivencia aquilo de outra maneira, é uma linha de fuga da esquizoanálise. O plano do possível se expande e você cria, você constitui a sua realidade, não uma realidade universal e pré-existente que caminharia sem você.
Deleuze e Guattari criam uma “filosofia da nomeação”, nos incitam a um despojamento dos tolhimentos formais e conceituais, nos autorizar a chamar, a designar, ou mesmo apelidar, estes novos agenciamentos de enunciado por nome que, para nós, tenham de alguma forma uma relação com nossa realidade, com nossos afetos, com nosso inconsciente. Dessa forma, nós lidamos apenas com aquilo que nos toca. Somos convocados à nossa própria experiência. Isso acontece em “Olho”. Não há certo e errado, o espectador é impelido a tomar as rédeas do que vê, de seus pensamentos, suas associações, suas referências.
Tanto em “Olho” como na esquizoanálise, a subjetividade é processual e depende de condições que tornam possível a emergência de novos territórios semiológicos. A subjetividade passa a ser um laboratório vivo onde mundos se criam e outros se dissolvem. Quando nomeio algo, há um processo de autonomização, diferenciação e liberdade. Meu agenciamento torna-se independente de conceitos pré-estebelecidos e torna-se efetivamente meu, minha criação.

A existência urbana e globalizada que se instaura com o capitalismo, implica numa multiplicidade de subjetividades que se propagam cada vez mais. Nesse contexto vivemos em crise por sermos afetados por um turbilhão de coisas. As coisas acontecem mais não nos acontecem. Vivemos sempre em defasagem em relação à atualidade de nossas experiências.
A criação subjetiva proposta pelo “Olho” e inerente ao projeto esquizoanalítico de Guattari e Deleuze pretende romper e desestabilizar tramas redundantes, dominantes, classificadas e clássicas, quando seleciona elementos desta mesma trama para conferir-lhes uma resignificação.

A subjetividade é marcada pelo privilégio da diferença e da multiplicidade em detrimento da identidade e da mesmice. Com a reviravolta esquizoanalítica, a subjetividade não é mais de natureza tal que possa ser reunida, pois estamos diante de processos de sobreposição, multiplicação e recombinação de uma infinidade de parcelas subjetivas que compõe um todo em contínua transformação.

Em “Olho”, a sombra é sobreposta ao corpo, o corpo à imagem projetada, a sombra à imagem. Da sombra nascem novas figuras que saem de um corpo mais ao mesmo tempo tomam forma de elementos inumanos. A imagem multiplicada de um corpo em contato com outras imagens deste corpo e com este próprio corpo presentificado se transfigura em outras imagens. O espectador vê e faz suas próprias recombinações a partir dessas recombinações.

“Trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a serialização da subjetividade, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepções do mundo. Singularizar é criar subjetividades originais, assim como o artista faz com suas obras. Da mesma forma que ele toma elementos que o interessam no mundo para criar sua obra de arte, devemos capturar seletivamente as experiências que nos tocam, que nos sensibilizam para compor novas possibilidades de existência” (COSTA, ?).


Biliografia

CANDIDO, C. (?). Uma Subjetividade Polifônica.
COSTA, A. G. (?). Da Emergência de Novas Subjetividades no Universo Pop Contemporâneo.
GUATTARI, F (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo. 34.
___________ (1988). Os Oito Princípios IN O Inconsciente Maquínico – Ensaios de Esquizo-análise. Campinas, SP. Papirus. 1988. Pág. 190.
___________ (1988) Referências para uma Esquizo-Análise IN O Inconsciente Maquínico – Ensaios de Esquizo-análise. Campinas, SP. Papirus. 1988. Pág. 190.
___________ (1981)Revolução Molecular – Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo, SP. Brasiliense. 1981. Pág. 65-66.
MIRANDA, L. L. (?). Produzir Subjetividades: O que Significa? .
VIEIRA, R. A. (?). A Compleição Nômade do Inconsciente Maquínico Desejante.

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